quarta-feira, maio 16, 2007

Sobre Satã - Parte II

(continuação...)

OS PAPÉIS SOCIAIS DE SATÃ

Nossa breve jornada pela história mostra que Satã é um conceito social útil. A seguir, identificamos alguns dos papéis sociais que ele teve:

DE DENTRO VERSUS DE FORA

Possivelmente, o papel social mais central que Satã teve é o de distinguir entre aqueles que pertencem a um grupo específico e aqueles que não pertencem.
As distinções podem ser úteis. Como cada um de nós é capaz de fazer distinções, sabemos a diferença entre MEU lado da estrada e SEU lado, MINHA conta de banco e a SUA. Porque distinguimos, nós entendemos e apreciamos as diferenças tais quais "liberais" e "conservadores", "capitalistas" e "socialistas", etc. Se você é pagão, pode ser assim por causa das distinções que traçou entre Paganismo e outras religiões. Cada um de nós toma decisões todo o tempo com base em distinções.

O problema vem quando as distinções tornam-se rivalidade, ou seguem um princípio do "nós versus eles'. Nesta visão de mundo, NÓS estamos aqui e ELES estão lá fora... e nós estamos contra eles. É bem pequeno o passo dessa posição para demonizar aqueles que diferem de nós.

Os pagãos apóiam o princípio de que a demonização é uma forma inaceitável de se relacionar a outros. Ter diferenças é bom. Discordar de outros é normal. Traçar distinções que são únicas para você é muito bom. Mas não há necessidade de transformar os outros em inimigos. Como um todo, o Paganismo aceita a diversidade. A riqueza que resulta dos seres humanos se expressarem totalmente - tanto em suas semelhanças quanto nas diferenças - é algo belo para os pagãos. É um tesouro humano.

A demonização dos outros não tem lugar na visão de mundo pagã e do tipo de sociedade que os pagãos desejam construir.

CONTROLAR POR MEIO DO MEDO

Qual a melhor forma de conseguir controlar as pessoas do que deixá-las com medo? Medo do "boogeyman", medo de serem condenadas, medo de fazer perguntas, medo de si mesmas... Como vimos do monge do deserto Santo Antônio, Satã não é apenas o "boogeyman" em algum lugar "lá fora"; ele é seu próprio EU. O boogeyman é você! Seus pensamentos, sentimentos e desejos são forças demoníacas levando-o à condenação.
A partir dessa perspectiva, o mundo é tão extremamente perigoso que mesmo seu próprio EU o trai como um agente de Satã. Onde você pode recorrer para ficar seguro?

As vozes - tanto da autoridade civil quanto religiosa - têm uma resposta para você: confiar apenas nelas! A idéia de alguem abandonar o seu poder pessoal é completamente inaceitável para os pagãos. O paganismo, então, se opõe ao conceito de que você não pode confiar em si mesmo, e se opõe às tentativas de controle por meio do medo.

UM PONTO DE CONGREGAÇÃO

Quando um grupo sucumbe ao medo e demoniza os "de fora", Satã geralmente se torna um ponto de congregação. Quando as pessoas sentem-se ameaçadas, elas fecham-se em círculo e unem-se mais proximamente como uma comunidade. A maioria dos pagãos, entretanto, não se sente atraída por esse tipo de construção de comunidade. Uma comunidade construída em torno de medos, ameaças e demonização de outros não é saudável, respeitável nem mesmo sustentável. Manter uma posição de prontidão para a guerra é exaustivo. Os pagãos usariam, em vez disso, suas energias para ganhar a atenção de outras crenças e culturas, e promover o diálogo e a cooperação entre os povos do mundo.


OS PAPÉIS MITOLÓGICOS DE SATÃ

Além das funções sociais, Satã possui diversos papéis em sua mitologia. Entender esses papéis vai ajudar a identificar qualidades e características "satânicas" e reconhecê-las em outras mitologias e mesmo na cultura. Satã representa certos comportamentos e qualidades experienciadas ao longo da história humana, independentemente do sistema de crenças.

SATÃ COMO O PRINCÍPIO DA OPOSIÇÃO E OBSTÁCULO

Este é o primeiro papel arquetípico que nós atribuímos a Satã, porque este é um dos primeiros caminhos que ele encontrou na literatura hebraica.

Em vez de mau, o princípio de oposição pode ser visto como divinamente inspirado e apoiado. Olhar para a oposição de uma perspectiva energética mostra que ela é, na verdade, uma necessidade da vida. Sem forças opostas, a Terra não giraria em torno de seu eixo ou seguiria uma órbita, espécies não se reproduziriam, plantas não germinariam, aviões não voariam e nenhum de nós seria capaz de andar. Sem forças muito bem-equilibradas em oposição, a vida e o crescimento seriam impossíveis. Satã, então, é representado como uma figura arquetípica dessas forças. Uma vez que a vida, por si só, está sujeira a oposição e resistência, você pode escolher visualizar Satã e essas energias como lições e oportunidades que, no final, criam um ambiente no qual todos nós podemos crescer.

SATÃ COMO UM QUESTIONADOR DA AUTORIDADE

Este pode ser bem o papel mais evidente e controverso. Ele é, porém, uma extensão do primeiro. Neste caso, entretanto, o objeto da oposição acaba sendo a figura da autoridade. Dependendo de sua visão de autoridade, individualismo e escolha, este papel de Satã pode deixá-lo mais ou menos desconfortável.

Exemplos de Satã nesse papel podem ser encontrados na história do Jardim do Éden (Gn. 3, 1-24) e em diversos encontros com Jesus ao longo do Novo Testamento. Lembre-se que o Novo Testamento foi escrito por autores que, na maior parte, viam os eventos na vida de Jesus como uma batalha cósmica entre as forças do bem e do mal. Para ser um oponente à altura, Satã precisava ser contrariador e desafiante.

De uma perspectiva arquetípica, o padrão de um oponente mais fraco questionando, desafiando e provocando uma figura de autoridade mais poderosa é algo familiar. Muitos de vocês experienciaram essa energia arquetípica durante os anos de adolescência. Alguns de vocês viram-na e admiraram-na nas marchas lideradas por Martin Luther King protestando contra a discriminação racial, ou ouviram sobre ela na vida de Gandhi e suas lutas contra o governo britânico. As escolas e igrejas incentivam o questionamento e o desafio à autoridade quando ditado pela consciência.
Como uma sociedade, nós temos sentimentos mistos sobre o arquétipo satânico do questionamento da autoridade. Por um lado, o condenamos e temos medo dele; por outro, admiramos aqueles que têm coragem de sustentar seus princípios, quaisquer que sejam a pressão ou as conseqüências.

SATÃ COMO TRAPACEIRO

Um trapaceiro é uma divindade que ensina por meio de truques, surpresas e lições inesperadas. Muitas mitologias possuem divindades trapaceiras, tais como Hermes/Mercúrio, Discórdia, Loki, Eris e o índio americano Coiote. Quando você interage com um trapaceiro, você pensa que está indo para uma direção, mas para sua surpresa e desgosto, descobre-se em outro lugar. Freqüentemente, você acaba melhor devido a isso, ou pelo menos mais sábio, até porque experiências de trapaça não são necessariamente desagradáveis.

Nos vemos Satã cumprindo seu papel de trapaceiro no Jardim do Éden que, na forma de serpente, ele convence Adão e Eva a comer o fruto proibido. Para seu espanto, essa ação lança-os fora de seu estado quase-animal e coloca em seus ombros o fardo de tomar decisões e escolher entre certo e errado.

Satã também aparece como trapaceiro no Livro de Jó, quando leva Jó por uma série de experiências horríveis. Essas experiências se tornam um meio de crescimento para Jó e uma oportunidade de falar com Javé sobre o significado da vida, do sofrimento e da espiritualidade. As experiências de Jó certamente não são as que ele escolheria para si mesmo, mas ele chega ao outro lado como um homem completamente diferente do que era sem elas.

SATÃ COMO TENTADOR

Muito relacionado ao papel de trapaceiro, é o papel de Satã como tentador. Na história de Jó, por exemplo, Satã não apenas o leva para certas experiências transformadoras, mas tenta Jó ao desespero, a desistir de sua fé, a ser destruído pelo que está acontecendo com ele. Como Jó resiste a essas tentações, ele avança espiritualmente. O tentador, então, ajuda-nos a esclarecer o que é importante para nós. A tentação serve como um ponto de avaliação.

É esse o papel que Satã cumpre na história de Jesus no deserto. O evangelho conta que, antes de Jesus começar seu ministério, ele foi para o deserto para jejuar e orar. Não há dúvida de que esse era um tempo de preparação e purificação para Jesus, e um tempo para pensar bastante sobre escolhas que viriam a seguir. Satã vem até Jesus no deserto e o tenta três vezes. Na primeira vez, Satã encoraja Jesus a transformar pedra em pão para, assim, satisfazer suas necessidades físicas; na segunda, ele oferece a Jesus o poder sobre o mundo se ele abandonasse sua fé em Javé; na terceira, Satã tenta Jesus a testar seu poder espiritual jogando-se de uma grande altura e fazendo os anjos pegá-lo.

Por meio dessas tentações, Jesus teve que se perguntar: "Quão importante é meu ministério para mim agora? Ele é mais importante que o poder? Ele é mais importante que a satisfação física? Ele é mais importante que a glória?" Cada tentação foi uma forma de ele avaliar seus objetivos e definir suas prioridades. Depois dessa experiência no deserto, ele sabia o que era importante para ele.

A tentação tem essa mesma função para cada um de nós. Se você quer ser um pianista famoso, por exemplo, terá que decidir se pagar suas aulas e praticar todos os dias são sua prioridade. Se se pega comprando uma televisão com o dinheiro de suas aulas ou visitando amigos quando deveria estar praticando, então precisa repensar seu objetivo. As tentações podem ser mais fortes do que seu desejo. Isso não é algo ruim de descobrir. É melhor descobrir claramente que seus valores e prioridades estão em algum lugar que não onde você pensava que eles estavam.

À medida que você avança em sua vida e busca aqueles interesses, relacionamentos e projetos de vida que acendem sua paixão, Satã virá até você e perguntará: "Aquela coisa lá é mais importante que seu objetivo?" Você terá que decidir como responder. Satã como tentador representa esse processo de avaliação. Seus testes e provocações o levam a um nível de poder e clareza que de outra forma você não atingiria.

SATÃ COMO HERÓI SOFREDOR

Geralmente não pensamos em Satã como herói na história do Jardim do Éden. Os heróis são personagens que desempenham tarefas ou atos extraordinários, geralmente para o bem de outros, e que correm riscos e trazem mudanças que afetam as vidas e destinos de um ou mais personagens. Como o mitologista Joseph Campbell coloca, a jornada do herói consiste em uma separação, iniciação e retorno. Heróis começam suas tarefas deixando seu ambiente normal - a separação - e viajam para o local da tarefa ou conflito, que pode ser outro país, o mundo inferior ou um reino sobrenatural. Uma vez lá, os heróis são iniciados em seus papéis, ou seja, eles se engajam em suas tarefas e realizam seus atos - o que Campbell chama de "a penetração em alguma fonte de poder". Uma conseqüência ou mudança resulta das ações do herói, o que pode ter efeito tanto benéficos quanto prejudiciais sobre outros. A saga termina quando o herói retorna de suas tarefas, tanto para seu estado anterior ou para alguma nova condição gerada por sua conduta heróica.

Enquanto os heróis são freqüentemente recompensados por suas realizações, vez ou outra um mito termina com a punição de um herói. Nós chamamos tal personagem de um HERÓI SOFREDOR. Quem ou o que pune o herói? Geralmente, os poderes reguladores da mitologia. Por vezes, a tarefa do herói envolve estar face a face com a autoridade e, para vencer aquele tipo de poder, o herói deve "lograr" a autoridade "tirando delas o seu tesouro". Se o herói vence, ele torna-se o "portador da mudança" e liberta do controle das figuras de autoridade as "energias vitais que vão alimentar o Universo".

Na história do Jardim do Éden, a humanidade existe na terra em um estado de inocência quase animal. Satã tem consciência de uma qualidade divina que mudaria a condição da humanidade. Ele dá esse presente divino à humanidade por meio da cooperação ativa de Adão e Eva. Como Javé diz sobre seu dom: "Veja! O homem tornou-se como um de nós, conhecendo o que é bom e o que é mau". Portanto, o recebimento desse presente marca uma elevação repentina no desenvolvimento da raça humana. Como diz Campbell, pode-se dizer que mediante essa esperteza como um trapaceiro, Satã enganou Javé retirando-lhe seu tesouro de conhecimento divino, tornou-se o portador de seu tesouro para a humanidade e libertou uma energia nova e vital para o Universo.

Satã é, então, punido por suas ações. Javé amaldiçoa Satã, bane-o da companhia de outros animais e o condena, em sua forma de serpente, a rastejar sobre sua barriga para sempre. Como o Prometeus grego, Satã desafiou a divindade mais poderosa a fim de trazer uma dádiva à humanidade e foi punido por isso. De uma perspectiva arquetípica, nós podemos dizer que Prometeus e Satã representam o padrão daqueles que beneficiam a humanidade a um grande custo para si mesmos. Por essa razão, nós identificamos ambas as divindades como "heróis sofredores".

SATÃ COMO INCORPORAÇÃO DO MAL

Esse é um desenvolvimento posterior e resultado da utilização de Satã como um meio de demonização. Satã tem sido utilizado como um recipiente arquetípico no qual são jogadas todas as coisas que as pessoas temem, desprezam e reprimem. Em vez de olhar para essas coisas mais profundamente, as pessoas as rotulam de más e satânicas e deixam o rótulo pensar por elas. Uma vez que uma pessoa ou atividade é identificada com esse rótulo, ela é temida, evitada e perseguida. Aqueles que utilizam o rótulo "satânico" tendem a se tornarem bastante impressionáveis em relação às coisas que foram rotuladas. O pensamento calmo, racional entra em colapso diante do terror e histeria.

Qualquer coisa que possa ser rotulada como satânica e má satisfaz os propósitos daqueles que rotulam. Nós temos visto o rótulo associado a políticos, figuras públicas, denominações religiosas, movimentos espirituais, conveniências modernas, livros, filmes, tecnologia, brinquedos e personagens de televisão.

A demonização do que você não gosta ou não entende não é nada nova, mas ela não o ajuda a tornar-se mais maduro cultural e espiritualmente, em especial em um mundo crescentemente diverso e global. Para a maioria, os pagãos tentam evitar utilizar rótulos emocionais e, em vez disso, avaliar uma idéia por seus méritos. Os pagãos também tentam evitar transferir a culpa de si mesmo como um meio de evitar a responsabilidade por suas ações. Descarregar seu mau comportamento em Satã - "o demônio me fez fazer isso!" - não funciona no paganismo.

Satã é um personagem muito mais rico e complexo do que freqüentemente se supõe. Isso se dá, provavelmente, porque a sociedade tornou-se tão temerosa por ele como o boogeyman cósmico que muitos de nós não conseguimos estudá-lo objetivamente, mesmo que o façamos para outras personagens mais malignas de panteões diferentes.

Um comentário:

Anônimo disse...

este artigo é muito bem formatado e explica claramente o que nos somos.REST IN PEACE