quarta-feira, abril 02, 2008

Asas

Asas

As asas são, antes de mais nada, símbolo de alçar vôo, isto é, do alijamento de um peso (leveza espiritual, alívio), de desmaterialização, de liberação – seja de alma ou de espírito -, de passagem ao corpo sutil. As tradições extremo-orientais, xamanísticas do Este ou do Oeste e do Ocidente, seja ele muçulmano ou judeu-cristão, não diferem sobre esse tema; porquanto o alçar vôo da alma e o xamã são ambos a mesma aventura, no que concerne à liberação da gravitação terrestre: Aquilo que o esoterismo alquímico exprimia através da imagem da águia devorando o leão. Em toda tradição, as asas jamais são recebidas, mas, sim, conquistadas mediante uma educação iniciática e purificadora por vezes longa e arriscada. Ainda nesses caso, podem-se comparar os relatos dos xamãs, os grandes místicos cristãos ou sufistas, e numerosos contos alegóricos, entre os quais, em primeiro lugar, se deveria citar os de Andersen. Contrariamente a uma idéia que tem sido aceita sem discussão, as asas do santo em oração não são apenas uma visão espiritual, como bem o atesta a crença na levitação.

A leveza e o poder de voar são peculiares aos Imortais taoístas, que podem assim, atingir as Ilhas dos Imortais. A própria etimologia dos caracteres que os designam põe em destaque o poder de elevar-se nos ares. A dietas que lhes é própria faz com lhes cresça sobre o corpo uma penugem ou mesmo plumas. Seus hábitos assemelham-se, por vezes, aos das aves.

O alçar vôo aplica-se universalmente à alma em sua aspiração ao estado supra-individual. O alçar vôo, a saída do corpo, se faz através da coroa da cabeça, segundo um simbolismo que examinamos ao tratar do domo. De forma semelhante, o taoísmo encara o alçar vôo do corpo sutil, que nada mais é do que o Embrião do imortal.

As asas indicam, ainda, a faculdade cognitiva: Aquele que compreende tem asas, está escrito em um dos Bramanas. E no Rig-Veda: A inteligência é o mais rápido dos pássaros. Aliás, não é por outra razão que os anjos – quer se trate de realidades ou de símbolos de estados espirituais – são alados.

É muito natural, pois, que a asa, as plumas, estejam relacionadas com o elemento Ar, elemento sutil por excelência. Assim, foi com a ajuda de seus braços recobertos de plumas que o arquiteto celeste Vixvacarman, como se usasse um fole de forja, realizou sua obra de demiurgo (COOH, ELIY, ELIM, GRIF, KALL, SILI).

Na tradição cristã, as asas significam o movimento aéreo, leve, e simbolizam o pneuma, o espírito. Na Bíblia, são símbolos constantes da espiritualidade, ou da espiritualização, dos seres que as possuem, quer sejam representados por figuras humanas, que tenham forma animal. Dizem respeito à divindade e a tudo o que dela pode se aproximar, após uma transfiguração; por exemplo, os anjos e a alma humana. Quando se fala de asas a propósito de um pássaro, trata-se, na maior parte das vezes, do símbolo da pomba, que significa o Espírito Santo. A alma propriamente dita, pelo fato de sua espiritualização, possui asas de pomba, no sentido dado pelo Salmo 54, 7: E eu digo: Oh! Tivera eu asas como a pomba, e voaria e procuraria um pouso. Possuir asas, portanto, é abandonar o mundo terreno para ter acesso ao celeste.

Esse tema das asas, cuja origem é platônica (Fedro, 246), é constantemente explorado pelos Padres da Igreja e pelos místicos. Fala-se das asas de Deus na Santa Escritura. Elas designam seu poder, sua beatitude e sua incorruptibilidade. Tu me protegerás à sombra de tuas asas (Salmos, 16, 8). Depositarás tua esperanças em suas asas (Salmos 33, 8). Segundo Grégoire de Nysse, se Deus, o arquétipo, é alado, a alma criada à sua imagem possui suas próprias asas.Se elas as perdeu, por causa do pecado original, é-lhe possível recobrá-las, e fazer isso justamente no ritmo de sua transfiguração. Se o homem se afastar de Deus, perde suas asas; aproximando-se, torna a recuperá-las. Na medida em que a alma for alada, mais alto se elevará, e o céu, em direção ao qual se encaminha, é comparável a um abismo sem fundo. Ela pode sempre subir mais, pois é incapaz de atingi-lo em sua plenitude. Assim como a roda, a asa é o símbolo habitual de deslocamento, de liberação das condições de lugar e de ingresso no estado espiritual que lhe é correlato (CHAS, 431).

Portanto, as asas exprimirão geralmente uma elevação ao sublime, um impulso para transcender a condição humana. Constituem o atributo mais característico do ser divinizado e de seu acesso à regiões uranianas. A adjunção de asas a certas figuras transforma os símbolos. Por exemplo, a serpente, de signo de perversão do espírito, torna-se, quando alada, símbolo de espiritualização, de divindade.
As asas indicam, com a sublimação, uma liberação e uma vitória: Convêm aos heróis que matam os monstros, os animais fabulosos, ferozes e repugnantes.

Sabe-se que Hermes (Mercúrio) tinha asas nos calcanhares. Gaston Bachelard vê no calcanhar divinizado o símbolo do viajante noturno, isto é, dos sonhos de viagem. Esta imagem dinâmica vivida é muito mais significativa na realidade onírica do que as asas presas às omoplatas. Com freqüência, o sonho de asas que batem é apenas um sonho de queda. Defendemo-nos da vertigem agitando os braços, e essa dinâmica pode originar asas nas costas. Porém, o vôo onírico natural, o vôo positivo que é nossa obra noturna, não é um vôo ritmado, tem a mesma continuidade e história de um impulso, é a criação rápida de um instante dinamizado. E o autor compara essas asas no calcanhar aos calçados, denominados pés ligeiros, de santos budistas a viajarem pelos ares, aos sapatos voadores dos contos populares; às botas de sete léguas. Para o homem que está sonhando, é no pé que estão as forças voadoras...

Nó nos permitiremos, pois, em nossas pesquisas de metapoética, conclui Bachelard, designar essas asas oníricas (BACS, 39-40). A asa, símbolo de dinamismo, sobrepõe-se aqui ao símbolo da espiritualização; presa ao pé, ela não implica necessariamente uma idéia de sublimação, mas, sim, de liberação de nossas importantes forças criadoras: O poeta, assim como o profeta, tem asas no momento em que está inspirado.

Fonte: Dicionário de símbolos
Jean Chevalier e Alain Cheerbrant
Martins Fontes, RJ, 1989, 2ª edição

Um comentário:

Anônimo disse...

Você completou alguns bons pontos lá. Eu fiz uma pesquisa sobre o tema e descobriu que a maioria das pessoas terá a mesma opinião com o seu blog.